quinta-feira, 6 de junho de 2013

Alexandre Herculano, para dar o que pensar nesta quinta-feira... Aguardo suas contribuições!

O Bispo Negro, de Alexandre Herculano

Fonte:
HERCULANO, Alexandre. O Bispo Negro e Arras por Foro de Espanha. Lisboa : Livraria Bertrand e editorial Verbo, 1971. (Biblioteca Básica Verbo)

Texto proveniente de:
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O BISPO NEGRO (1130)
Alexandre Herculano

I


                Houve tempo em que a velha catedral conimbricense, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que crêem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba.
                Então aquelas ameias e torres não haviam sido tocadas das mãos de homens, desde que os seus edificadores as tinham colocado sobre as alturas; e, todavia, já então ninguém sabia se esses edificadores eram da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores árabes.
                Mas, quer filha dos valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos sarracenos, ela era formosa, na sua singela grandeza, entre as outras sés das Espanhas. Aí sucedeu o que ora ouvireis contar.



II


                Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o facto; a tradição verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.
                Em uma das torres do velho alcácer de Coimbra, assentado entre duas ameias, a horas em que o sol fugia do horizonte, o príncipe conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma.
                E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nédia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.
                - Vedes vós – disse ele ao Espadeiro – o nosso leal Dom Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o faz sair a tais desoras da crasta da sua sé. Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer. – E desceram.
                Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcácer de Coimbra, pendurados de cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lâmpadas e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado.
                Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra, abriu-se, e dela saíram o príncipe e Lourenço Viegas, que desciam da torre. Quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e solene do bispo D. Bernardo.
                - Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio vos traz aqui esta noute? - disse o príncipe a D. Bernardo.
                - Más novas,. senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi.
                - E que quer de vós o papa?
                - Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe...
                - Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.
                - E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes cumprir seu mandado.
                - E vós que intentais fazer?
                - Obedecer ao sucessor de São Pedro.
                - Quê? Dom Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical; aquele que o alevantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe, porque ele não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavaleiros portugueses?
                - Tudo vos devo, senhor - atalhou o bispo - salvo a minha alma, que pertence a Deus, a minha fé, que devo a Cristo, e a minha obediência, que guardarei ao papa.
                - Dom Bernardo! Dom Bernardo! - disse o príncipe, sufocado de cólera -, lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou sem paga!
                - Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?
                - Não! Mil vezes não!
                - Guardai-vos!
                E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silêncio.



III


                Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Lourenço Viegas passeava com o príncipe na sala de armas do paço mourisco.
                - Se eu próprio o vi, montado na sua nédia mula, ir lá muito ao longe, caminho da terra de Santa Maria. Na porta da Sé estava pregado um pergaminho com larga escritura, que, segundo me afirmou um clérigo velho que aí chegara quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito... - Isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o ouvisse.
                - Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excomunga, porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo à Sé. Bispo Dom Bernardo, quando te arrependeres da tua ousadia já será tarde.
                Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas, porque o sol era nado, e o príncipe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens, atravessava a igreja e dirigia-se à crasta, onde, ao som de campa tangida, tinha mandado ajuntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse.



IV


                Solene era o espectáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cónegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bago suave do vento matutino. No topo da crasta estava o príncipe em pé, encostado ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cónegos iam chegando e formavam um semicírculo a pouco distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.
                Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.
                Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:
                - Cónegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?
                Ninguém respondeu palavra.
                - Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu - prosseguiu o príncipe -: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.
                - Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - disse o mais e velho e autorizado dos cónegos que estavam presentes e que era o adaião.
                - Ámen - responderam os outros.
                Esse que vós dizeis - bradou o infante cheio de cólera -, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
                - Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - repetiu o adaião.
                - Ámen - responderam os mais.
                O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.
                - Pois bem! - disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. - Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo...
                Os cónegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.
                Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cónegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.
                - Como hás nome? - perguntou-lhe o príncipe.
                - Senhor, hei nome Çoleima.
                - És bom clérigo?
                - Na companhia não há dois que sejam melhores.
                - Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.
                O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contracção de susto.
                - Missa não vos cantarei eu, senhor - respondeu o negro com voz trémula -, que para tal auto não tenho as ordens requeridas.
                - Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.
                O clérigo curvou a fronte.
                - Kirie-eleyson... Kirie-eleyson... Kirie-eleysom! - garganteava daí a pouco Dom Çoleima, revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.



V


                Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzelas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em tom monótono suas magoadas endechas, ou folgavam e riam com os arremedilhos satíricos dos truões e farsistas. Os cavaleiros, em pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labirinto de colunas, que dava saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negócio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permitiam. Eram estas personagens Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa, o Bom. Os gestos dos quatro cavaleiros davam mostras de que eles estavam vivamente agitados.
                - É o que afirma, senhor, o mensageiro - dizia Gonçalo de Sousa - que me enviou o abade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos supõe herege. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e em Espanha, vinham a lhe beijar a mão reis, príncipes e senhores: a eleição de Dom Çoleima não pode, por certo, ir avante...
                - Irá, irá - respondeu o príncipe em voz tão alta que as palavras reboaram pelas abóbadas do vasto aposento. - Que o legado tenha tento em si! Não sei eu se haveria aí cardeal ou apostólico que me estendesse a mão para eu lha beijar, que pelo cotovelo lha não cortasse fora a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!
                Isto foi o que se ouviu daquela conversação: os três cavaleiros falaram com o príncipe ainda por muito tempo; mas em voz tão baixa, que ninguém percebeu mais nada.



VI


                Dois dias depois, o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nédia mula, como se maleitas o houvessem tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as havia repetido ao legado.
                Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de ânimo, encaminhou-se direto ao alcáter real.
                O príncipe saiu a recebê-lo acompanhado de senhores e cavaleiros. Com modos corteses, guiou-o à sala do seu conselho, e aí se passou o que ora ouvireis contar.
                O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante dele o legado, em um assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o filho do conde Henrique.
                - Dom cardeal - começou o príncipe -, que viestes vós fazer a minha terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor papa para estas hostes que faço e com que guerreio, noite e dia, os infiéis da fronteira. Se isto trazeis, aceitar-vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem.
                No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do príncipe, que eram de amargo escárnio.
                - Não a trazer-vos riquezas - atalhou ele -, mas a ensinar-vos a fé vim eu; que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo Dom Bernardo e pondo em seu lugar um bispo sagrado com vossas manoplas, vitoriado só por vós com palavras blasfemas e malditas...
                - Calai-vos, dom cardeal - gritou Afonso Henriques - que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé? Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem; tão certo, como vós outros romãos, cremos na Santa Trindade. Se a outra cousa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje ir-vos podeis a vossa pousada.
                E ergueu-se: os olhos chamejavam-lhe de furror. Toda a ousadia do legado desapareceu como fumo; e, sem atinar com resposta, saiu do alcácer.



VII


                O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã, o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.
                O príncipe foi um dos que despertaram mais cedo. Os sinos harmoniosos da Sé costumavam acordá-lo tocando as ave-marias: mas naquele dia ficaram mudos; e, quando ele se ergueu, havia mais de uma hora que o Sol subia para o alto dos céus da banda do Oriente.
                - Misericórdia!, misericórdia! - gritavam devotamente homens e mulheres à porta do alcácer, com alarido infernal. O príncipe ouviu aquele ruído.
                - Que vozes são estas que soam? - perguntou ele a um pajem.
                O pajem respondeu-lhe chorando:
                - Senhor, o cardeal excomungou esta noite a cidade e partiu: as igrejas estão fechadas; os sinos já não há quem os toque; os clérigos fecham-se em suas pousadas. A maldição do santo padre de Roma caiu sobre nossas cabeças.
                Outras voz soou à porta do alcácer:
                - Misericórdia!, misericórdia!
                - Que enfreiem e selem o meu cavalo de batalha. Pajem, que enfreiem e selem o meu melhor corredor.
                Isto dizia o príncipe encaminhando-se para a sala de armas. Aí envergou à pressa um saio de malha e pegou em um montante que dois portugueses dos de hoje apenas valeriam a alevantar do chão. O pajem tinha saído, e dali a pouco o melhor cavalo de batalha que havia em Coimbra tropeava e rinchava à porta do alcácer.



VIII


                Um clérigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o caminho da Vimieira e, de instante a instante, espicaçava os ilhais da cavalgadura com seus acicates de prata. Em outras duas mulas iam ao lado dele dois mancebos com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam as gramaticais. Eram o cardeal, que se ia a Roma, e dois sobrinhos seus, que o haviam acompanhado.
                Entretanto o príncipe partida de Coimbra sozinho. Quando pela manhã Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o carácter violento de Afonso Henriques, os dois cavaleiros seguiram-lhe a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele alevantava, correndo ao longo da estrada, e o cintilar do sol, batendo-lhe de chapa na cervilheira, semelhante ao dorso de um crocodilho.
                Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante.
                - Senhor, senhor; aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente?
                - Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim...
                A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados.
                - Oh! ... - disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.
                - Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tuam! - rezou o cardeal em voz baixa e trémula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.
                Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás i crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares.
                - Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus - gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.
                - Príncipe - disse o velho, chorando -, não me faças mal; que estou à tua mercê! - Os dois mancebos também choravam.
                Afonso Henriques deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos.
                - Estás à minha mercê? - disse ele por fim. - Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja alevantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?
                - Sim, sim! - respondeu o legado com voz sumida.
                - Juras?
                - Juro.
                - Mancebos, acompanhai-me.
                Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sòzinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria.
                Daí a quatro meses, D. Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho  da Vimieira o salmo que começa:
                In exitu Israel de AEgypto.
                Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:
                - Se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a cova para ter enterrar, não sòmente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.



Nota

A lenda precedente é tirada das crónicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixá-las no pó das bibliotecas, onde haviam jazido em paz por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente na crónica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a substância de quatro capítulos, que foram suprimidos na edição deste autor, e que mereceram da parte do académico D. Francisco de S. Luís uma grave refutação. Toda a narrativa das circunstâncias que se deram no facto, aliás verdadeiro, da prisão de D. Teresa, das tentativas oposicionistas do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes; mas também é certo que ela se originou de alguma acto de violência praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o inglês Rogério de Hoveden, narra um facto, acontecido em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fábula. A narrativa do cronista está indicando que o acontecimento fizera certo ruído na Europa, e a própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava já alterado na tradição. O que é certo é que o achar-se esta conservada fora de Portugal desde o século duodécimo por um escritor que Ruy de Pina e Acenheiro não leram (porque foi publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como já a vemos no cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página 640 da edição de Hoveden, por Savile:
                “No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a Espanha, depôs muitos prelados (abbates), ou por culpas deles ou por ímpeto próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) não consentiu que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quando não cortar-lhe-ia um pé.



FIM
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terça-feira, 4 de junho de 2013

Eça de Queirós, Minhas Senhoras (Senhoritas) e Meus Senhores! E tenham uma linda terça-feira! Continuo aguardando vossas intervenções...

FREI GENEBRO
Eça de Queirós

I

Nesse tempo ainda vivia na sua solidão das montanhas da Úmbria, o divino Francisco de Assis – e já por toda a Itália se louvava a santidade de Fei Genebro, seu amigo e seu discípulo.
Frei Genebro, na verdade, completara a perfeição em todas as virtudes evangélicas. Pela abundância e perpetuidade da Oração, ele arrancava de sua alma as raízes mais miúdas do Pecado, e tornava-a limpa e cândida como um desses celestes jardins em que o solo anda regado pelo Senhor, e onde só podem brotar açucenas. A sua penitência, durante vinte anos de claustro, fora tão dura e alta que já não temia o Tentador; e agora, só com o sacudir a manga do hábito, rechaçava as tentações, as mais pavorosas ou as mais deliciosas, como se fossem apenas moscas importunas. Benéfica e universal à maneira de um orvalho de verão, a sua caridade não se derramava somente sobre as misérias do pobre, mas sobre as melancolias do rico. Na sua humilíssima humildade não se considerava nem o igual d’um verme. Os bravios barões, cujas negras torres esmagavam a Itália, acolhiam reverentemente e curvavam a cabeça a esse franciscano descalço e mal remendado que lhes ensinava a mansidão. Em Roma, em S. João de Latrão, o Papa Honório beijara as feridas de cadeias que lhe tinham ficado nos pulsos, do ano em que na Mourama, por amor dos escravos, padecera a escravidão. E como nessas idades os anjos ainda viajavam na terra, com as asas escondidas, arrimados a um bordão, muitas vezes, trilhando uma velha estrada pagã ou atravessando uma selva, ele encontrava um moço de inefável formosura, que lhe sorria e murmurava:
- Bons dias, irmão Genebro!
Ora, um dia, indo este admirável mendicante de Spoleto para Terni, e avistando no azul e no sol da manhã, sobre uma colina coberta de carvalhos, as ruínas do castelo de Otofrid, pensou no seu amigo Egydio, antigo noviço como ele no mosteiro de Santa Maria dos Anjos, que se retirara àquele ermo para se avizinhar mais de Deus, e ali habitava uma cabana de colmo, junto das muralhas derrocadas, cantando e regando as alfaces do seu horto, porque a sua virtude era amena. E como mais de três anos tinham passado desde que visitara o bom Egydio, largou a estrada, passou embaixo, no vale, sobre as alpondras, o riacho que fugia por entre os aloendros em flor, e começou a subir, lentamente, a colina frondosa. Depois da poeira e ardor do caminho de Spoleto, era doce a larga sombra dos castanheiros e a relva que lhe refrescava os pés doridos. A meia encosta, numa rocha onde se esguedelhavam silvados, sussurrava e luzia um fio de água. Estendido ao lado, nas pedras úmidas, dormia, ressonando consoladamente, um homem, que decerto ali guardava porcos, porque vestia um grosso surrão de coiro e trazia, pendurada na cinta, uma buzina de porqueiro. O bom frade bebeu de leve, afugentou os moscardos que zumbiam sobre a rude face adormecida e continuou a trepar a colina, com o seu alforge, o seu cajado, agradecendo ao Senhor aquela água, aquela sombra, aquela frescura, tantos bens inesperados. Em breve avistou, com efeito, o rebanho de porcos, espalhados sob as frondes, roncando e fossando as raízes, uns magros e agudos, de cerdas duras, outros redondos, com o focinho curto afogado em gordura, e os bacorinhos correndo em torno às tetas das mães, luzidios e cor de rosa.
Frei Genebro pensou nos lobos e lamentou o sono do pastor descuidado. No fim da mata começava a rocha, onde os restos do castelo Lombardo se erguiam, revestidos de hera, conservando ainda alguma seteira esburacada sobre o céu, ou, numa esquina de torre, uma goteira que, esticando o pescoço de dragão, espreitava por meio das silvas bravas.
A cabana do ermitão, telhada de colmo que lascas de pedra seguravam, apenas se percebia, entre aqueles escuros granitos, pela horta que em frente verdejava, com os seus talhões de couve e estacas de feijoal, entre alfazema cheirosa. Egydio não andaria afastado porque sobre o murozinho de pedra solta ficara pousado o seu cântaro, o seu podão e a sua enxada. E docemente, para o não importunar, se àquela hora de sesta estivesse recolhido e orando, Frei Genebro empurrou a porta de pranchas velhas, que não tinha loquete para ser mais hospitaleira.
- Irmão Egydio!
Do fundo da choça rude, que mais parecia cova de bicho, veio um lento gemido:
- Quem me chama? Aqui neste canto, neste canto a morrer!... A morrer, meu irmão!
Frei Genebro acudiu em grande dó; encontrou o bom ermitão estirado num monte de folhas secas, encolhido em farrapos, e tão definhado, que a sua face, outrora farta e rosada, era como um pergaminho muito enrugado, perdido entre os flocos das barbas brancas. Com infinita caridade e doçura o abraçou.
- E há quanto tempo, há quanto tempo neste abandono, irmão Egydio?
Louvado Deus, desde a véspera! Só na véspera, à tarde, depois de olhar uma derradeira vez para o sol e para a sua horta, se viera estender naquele canto para acabar... Mas havia meses que com ele entrara um cansaço, que nem podia segurar a bilha cheia quando voltava da fonte.
- E dizei, irmão Egydio, pois que o Senhor me trouxe, que posso eu fazer pelo vosso corpo? Pelo corpo, digo; que pela alma bastante tendes vós feito na virtude desta solidão!
Gemendo, arrepanhando para o peito as folhas secas em que jazia, como se fossem dobras dum lençol, o pobre ermitão murmurou:
- Meu bom Frei Genebro, não sei se é pecado, mas toda esta noite, em verdade vos confesso, me apeteceu comer um pedaço de carne, um pedaço de porco assado!... Mas será pecado?
Frei Genebro, com a sua imensa misericórdia, logo o tranqüilizou. Pecado? Não, certamente! Aquele que, por tortura, recusa ao seu corpo um contentamento honesto, desagrada ao Senhor. Não ordenava ele aos seus discípulos que comessem as boas cousas da terra? O corpo é servo; e está na vontade divina que as suas forças sejam sustentadas, para que preste ao espírito, seu amo, bom e leal serviço. Quando Frei Silvestre, já tão doentinho, sentira aquele longo desejo de uvas moscatéis, o bom Francisco de Assis logo o conduziu à vinha, e por suas mãos lhe apanhou os melhores cachos, depois de os abençoar para serem mais sumarentos e mais doces...
- É um pedaço de porco assado que apeteceis? – exclamava risonhamente o bom Frei Genebro, acariciando as mãos transparentes do ermitão. – Pois sossegai, irmão querido, que bem sei como vos vou contentar.
E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor, agarrou o afiado podão que pousava sobre o muro da horta. Arregaçando as mangas do hábito, e mais ligeiro que um gamo, porque era aquele um serviço do Senhor, correu pela colina, até aos densos castanheiros onde encontrara o rebanho de porcos. E aí, andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que fossava a bolota, desabou sobre ele, e, enquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou, com dois golpes certeiros do podão, a perna por onde o agarrara. Depois, com as mãos salpicadas de sangue, a perna do porco bem alta a pingar sangue, deixando a rês a arquejar numa poça de sangue, o piedoso homem galgou a colina, correu à cabana, gritou para dentro alegremente:
- Irmão Egydio, a peça de carne já o Senhor a deu! E eu, em Santa Maria dos Anjos, era bom cozinheiro.
Na horta do ermitão arrancou uma estaca do feijoal, que, com o podão sangrento, aguçou em espeto. Entre duas pedras acendeu uma fogueira. Com zeloso carinho assou a perna do porco. Tanta era a sua caridade que para dar a Egydio todos os antegozos daquele banquete, raro em terra de mortificação, anunciava com vozes festivas e de boa promessa:
- Já vai aloirando o porquinho, irmão Egydio! A pele já tosta, meu santo!
Entrou enfim na choça, triunfalmente, com o assado que fumegava e rescendia, cercado de frescas folhas de alface. Ternamente, ajudou a sentar o velho, que tremia e se babava de gula. Arredou das pobres faces maceradas os cabelos que o suor da fraqueza empastara. E, para que o bom Egydio se não vexasse com a sua voracidade e tão carnal apetite, ia afirmando, enquanto lhe partia as fibras gordas, que também ele comeria regaladamente daquele excelente porco, se não tivesse almoçado à farta na Locanda dos Três Caminhos.
- Mas nem bocado agora me podia entrar, meu irmão! Com uma galinha inteira me atochei! E depois uma fritada de ovos! E de vinho branco, um quartilho!
E o santo homem mentia santamente – porque desde madrugada, não provara mais que um magro caldo de ervas, recebido por esmola à cancela de uma granja.
Farto, consolado, Egydio deu um suspiro, recaiu no seu leito de folhas secas. Que bem lhe fizera, que bem lhe fizera! O Senhor, na sua justiça, pagasse a seu irmão Genebro aquele pedaço de porco! Até sentia a alma mais rija para a temerosa jornada... E o ermitão com as mãos postas, Genebro ajoelhado, ambos louvaram, ardentemente,  o Senhor que, a toda a necessidade solitária, manda de longe o socorro.
Então, tendo coberto Egydio com um pedaço de manta e posto, a seu lado, a bilha cheia de água fresca, e tapado, contra as aragens da tarde, a fresta da cabana, Frei Genebro, debruçado sobre ele, murmurou:
- Meu bom irmão, vós não podeis ficar neste abandono... Eu vou levado por obra de Jesus, que não admite tardança. Mas passarei no convento de Sambricena e darei recado para que um noviço venha e cuide de vós com amor, no vosso transe. Deus vos vele entretanto, meu irmão; Deus vos sossegue e vos ampare com a sua mão direita!
Mas Egydio cerrara os olhos, nem se moveu, ou porque adormecera, ou porque o seu espírito, tendo pago aquele derradeiro salário ao corpo, como a um bom servidor, para sempre partira, finda a sua obra na terra. Frei Genebro abençoou o velho, tomou o seu bordão, desceu a colina dos grandes carvalhos. Sob a fronde, para os lados onde andava o rebanho, a buzina do porqueiro ressoava agora num toque de alarme e de furor. Decerto acordara, descobrira o seu porco mutilado... Estugando o passo, Frei Genebro pensava quanto era magnânimo o Senhor em permitir que o homem, feito à sua imagem augusta, recebesse tão fácil consolação duma perna de cerdo assada entre duas pedras.
Retomou a estrada, marchou para Terni. E prodigiosa foi, desde esse dia, a atividade da sua virtude. Através de toda a Itália, sem descanso, pregou o Evangelho Eterno, adoçando a aspereza dos ricos, alargando a esperança dos pobres. O seu imenso amor ia ainda para além dos que sofrem, até àqueles que pecam, oferecendo um alívio a cada dor, estendendo um perdão a cada culpa: e com a mesma caridade com que tratava os leprosos, convertia os bandidos. Durante as invernias e a neve, vezes inumeráveis dava, aos mendigos, a sua túnica, as suas alpercatas; os abades dos mosteiros ricos e as damas devotas de novo o vestiam, para evitar o escândalo da sua nudez através das cidades; e sem demora, na primeira esquina, ante qualquer esfarrapado, ele se despojava sorrindo. Para remir servos que penavam sob um amo fero, penetrava nas igrejas, arrancava do altar os candelabros de prata, afirmando, jovialmente, que mais praz a Deus uma alma liberta que uma tocha acesa.
Cercado de viúvas, de crianças famintas, invadia as padarias, os açougues, até as tendas dos cambistas, e reclamava imperiosamente, em nome de Deus, a parte dos deserdados. Sofrer, sentir a humilhação, eram, para ele, as únicas alegrias completas: nada o deliciava mais do que chegar de noite, molhado, esfaimado, tiritando, a uma opulenta abadia feudal, e ser repelido da portaria como um mau vagabundo: só então, agachado nos lodos do caminho, mastigando um punhado de ervas cruas, ele se reconhecia verdadeiramente irmão de Jesus, que não tivera também, como têm sequer os bichos do mato, um covil para se abrigar. Quando um dia, em Perusa, as confrarias saíram a seu encontro, com bandeiras festivas, ao repique dos sinos, ele correu para um monte de esterco, onde se rolou e se sujou, para que daqueles que o vinham engrandecer, só recebesse compaixão e escárnio. Nos claustros, nos descampados, em meio das multidões, durante as lides mais pesadas, orava constantemente, não por obrigação, mas porque na prece encontrava um deleite adorável. Deleite maior, porém, era, para o franciscano, ensinar e servir. Assim, longos anos errou entre os homens, vertendo o seu coração como a água de um rio, oferecendo os seus braços como alavancas incansáveis; e tão depressa, numa ladeira deserta, aliviava uma pobre velha da sua carga de lenha, como numa cidade revoltada, onde reluzissem armas, se adiantava, com o peito aberto, e amansava as discórdias.
Enfim, uma tarde, em véspera de Páscoa, estando a descansar nos degraus de Santa Maria dos Anjos, avistou de repente, no ar liso e branco, uma vasta mão luminosa que sobre ele se abria e faiscava. Pensativo, murmurou:
- Eis a mão de Deus, a sua mão direita, que se estende para me acolher ou para me repelir.
Deu logo a um pobre, que ali rezava a Ave-Maria, com a sua sacola nos joelhos, tudo o que no mundo lhe restava, que era um volume do Evangelho, muito usado e manchado das suas lágrimas. No domingo, na igreja, ao levantar da Hóstia, desmaiou. Sentindo então que ia terminar a sua jornada terrestre, quis que o levassem para um curral, o deitassem sobre uma camada de cinzas.
Em santa obediência ao guardião do convento, consentiu que o limpassem de seus trapos, lhe vestissem um hábito novo: mas, com os olhos alagados de ternura, implorou que o enterrassem num sepulcro emprestado como fora o de Jesus, seu senhor.
E, suspirando, só se queixava de não sofrer:
- O senhor, que tanto sofreu, porque me não manda a mim o padecimento bendito?
De madrugada pediu que abrissem, bem largo, o portão do curral.
Contemplou o céu que clareava, escutou as andorinhas que, na frescura e silêncio, começavam a cantar sobre o beiral do telhado, e, sorrindo, recordou uma manhã, assim de silêncio e frescura, em que, andando com Francisco de Assis à beira do lago de Perusa, o mestre incomparável se detivera ante uma árvore cheia de pássaros, e, fraternalmente, lhes recomendara que louvassem sempre o Senhor! “Meus irmãos, meus irmãos passarinhos, cantai bem o vosso Criador, que vos deu essa árvore para que nela habiteis, e toda esta limpa água para nela beber, e essas penas bem quentes para vos agasalharem, a vós e aos vossos filhinhos!” Depois, beijando humildemente a manga do monge que o amparava, Frei Genebro morreu.

II
Logo que ele cerrou os seus olhos carnais, um Grande Anjo penetrou diafanamente no curral e tomou, nos braços, a alma de Frei Genebro. Durante um momento, na fina luz da madrugada, deslizou por sobre o prado fronteiro tão levemente que nem roçava as pontas orvalhadas da relva alta. Depois, abrindo as asas, radiantes e níveas, transpôs, num vôo sereno, as nuvens, os astros, todo o céu que os homens conhecem.
Aninhada nos seus braços, como na doçura de um berço, a alma de Genebro conservava a forma do corpo  que sobre a terra ficara; o hábito franciscano ainda a cobria, com um resto de poeira e de cinza nas pregas rudes; e, com um olhar novo, que agora tudo trespassava e tudo compreendia, ela contemplava, num deslumbramento, aquela região em que o Anjo parara, para além dos universos transitórios e de todos os rumores siderais. Era um espaço sem limite, sem contorno e sem cor. Por cima começava uma claridade, subindo espalhada à maneira duma aurora, cada vez mais branca, e mais luzente, e mais radiante, até que resplandecia num fulgor tão sublime que nela um sol coruscante seria como uma nódoa pardacenta. E por baixo estendia-se uma sombra cada vez mais baça, mais fusca, mais cinzenta, até que formava como um espesso crepúsculo de profunda, insondável tristeza. Entre essa refulgência ascendente e a escuridão interior, permanecera o Anjo imóvel, esperando, com as asas fechadas. E a alma de Genebro perfeitamente sentia que estava ali, esperando também, entre o Purgatório e o Paraíso. Então, subitamente, nas alturas, apareceram os dois imensos pratos duma Balança – um que rebrilhava como diamante e era reservado às suas Boas Obras, outro, negrejando mais que carvão, para receber o peso de suas Obras Más. Entre os braços do Anjo, a alma de Genebro estremeceu... Mas o prato diamantino começou a descer lentamente. Oh! Contentamento e glória! Carregado com as suas Boas Obras, ele descia calmo e majestoso, espargindo claridade. Tão pesado vinha, que as suas grossas cordas se retesavam, rangiam. E entre elas, formando como uma montanha de neve, alvejavam magnificamente as suas virtudes evangélicas. Lá estavam as incontáveis esmolas que semeara no mundo, agora desabrochadas em alvas flores, cheias de aroma e de luz.
A sua humildade era um cimo, aureolado por um clarão. Cada uma das suas penitências cintilava mais limpidamente que cristais puríssimos. E a sua oração perene subia e enrolava-se em torno das cordas, à maneira duma deslumbrante névoa de ouro.
Sereno, tendo a majestade de um astro, o prato das Boas Obras parou, finalmente, com a sua carga preciosa. O outro, lá em cima, não se movia também, negro, da cor do carvão, inútil, esquecido, vazio. Já das profundidades, sonoros bandos de Serafins voavam, balançando palmas verdes. O pobre franciscano ia entrar triunfalmente no Paraíso – e aquela era a milícia divina que o acompanharia cantando. Um frêmito de alegria passou na luz do Paraíso, que um Santo novo enriquecia. E a alma de Genebro anteprovou as delícias da Bem-aventurança.
Subitamente, porém, no alto, o prato negro oscilou como a um peso inesperado que sobre ele caísse! E começou a descer, duro, temeroso, fazendo uma sombra dolente através da celestial claridade. Que Má Ação de Genebro trazia ele tão miúda que nem se avistava, tão pesada que forçava o prato luminoso a subir, remontar ligeiramente como se a montanha de Boas Ações que nele transbordavam, fossem um fumo mentiroso? OH! Mágoa! Oh! Desesperança! Os Serafins recuavam, com as asas trementes. Na alma de Frei Genebro correu um arrepio imenso de terror. O negro prato descia, firme, inexorável, com as cordas retesas. E na região que se cavava sob os pés do Anjo, cinzenta, de inconsolável tristeza, uma massa de sombra, molemente e sem rumor, arfou, cresceu, rolou, como a onda duma maré devoradora.
O prato, mais triste que a noite, parara – parara em pavoroso equilíbrio com o prato que rebrilhava. E os Serafins, Genebro, o Anjo que o trouxera, descobriram, no fundo daquele prato que inutilizava um Santo, um porco, um pobre porquinho com uma perna barbaramente cortada, arquejando, a morrer, numa poça de sangue... O animal mutilado pesava tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes perfeitas!
Então, das alturas, surgiu uma vasta mão, abrindo os dedos que faiscavam. Era a mão de Deus, a sua mão direita, que aparecera a Genebro na escada de Santa Maria dos Anjos, e que agora supremamente se estendia para o acolher ou para o repelir. Toda a luz e toda a sombra, desde o Paraíso fulgente ao Purgatório crepuscular, se contraíram num recolhimento de inexprimível amor e terror. E na extática mudez, a vasta mão, através das alturas, lançou um gesto que repelia...
Então o Anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Camões, para começarmos a semana... COMENTEM, LEITORES!!!!! VAMOS CONVERSAR!!!!!

Foge-me pouco a pouco a curta vida (fragmento)

Luís de Camões
Foge-me pouco a pouco a curta vida,
– se por caso é verdade que inda vivo – ;
vai-se-me o breve tempo d’ante os olhos;
choro pelo passado em quanto falo,
se me passam os dias passo a passo,
vai-se-me enfim a idade, e fica a pena.

Que maneira tão áspera de pena!
Que nunca uma hora viu tão longa vida
em que possa do mal mover-se um passo!
Que mais me monta ser morto que vivo?
Para que choro, enfim? Para que falo,
se lograr-me não pude de meus olhos?

Ó fermosos, gentis e claros olhos,
cuja ausência me move a tanta pena,
quanta se não compreende em quanto falo!
Se, no fim de tão longa e curta vida,
de vós m’inda inflamasse o raio vivo,
por bem teria tudo quanto passo.

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